O Brasil e sua atual crise de identidade
- Guilherme Carvalho

- 26 de out. de 2015
- 5 min de leitura

Escutamos, rotineiramente, o velho clichê dizendo: "O Brasil não mudou. Nada muda e nunca vai
mudar no Brasil" e, por conta disso, quase que inconscientemente, nós, brasileiros, nos tornamos patológicos pessimistas. Fato que, ironicamente, deveria contrastar com o esteriótipo que tanto nos caracteriza como brasileiros mundo afora: nosso calor humano, cordialidade e índole festiva e otimista; porém, nada mais tipicamente brasileiro do que situações contrastantes que, de alguma forma, se harmonizam...ou não! Pelo menos não ultimamente! Deixando os argumentos político-partidários de lado, sejam eles pró ou contra o antigo governo tucano (PSDB) ou o atual governo petista (PT), pois sabemos que esses argumentos não visam uma análise racional dos fatos e dos processos históricos, e sim passional desses, distorcendo percepções e manipulando ideias; a verdade é que o Brasil mudou, muda e vai continuar mudando, e os sintomas e as evidências que comprovam essa afirmação vêm aparecendo todos os dias na TV.
O fato é que quase tudo que tem acontecido no país, em termos políticos e socioeconômicos, e que culminou nas massivas manifestações de junho de 2013, está diretamente associado a essa mudança lenta, estrutural e profunda, embora quase imperceptível, que está ocorrendo no Brasil nos últimos 20 anos: o acesso de, aproximadamente, 3,5 milhões de brasileiros ao mercado de trabalho e de consumo. Enquanto alguns analistas contestam os parâmetros estatísticos do que significa ser "pobre ou não" no Brasil, e outros criticam a maneira pela qual muitos desses brasileiros atingiram esse acesso, via Bolsa Família e outros programas assistencialistas do governo federal, ninguém discute que esse fenômeno social é real e irrefutável. Concorde você ou não com as políticas públicas que ajudaram a desencadear essa ascensão social. E você não precisa acreditar nas minhas palavras!
É só notar os claros e evidentes sintomas de uma sociedade que passa por uma transformação social significativa e demonstra suas limitações políticas, econômicas, institucionais e infraestruturais para lhe dar com essa transformação a qual gera diversos tipos de novas demandas e necessidades pelos atuais padrões da população brasileira. As manifestações populares de junho de 2013 e todos os outros protestos maiores e menores que as sucederam; e que ainda ocorrem, quase que diariamente, quer por pequenas insurreições com pneus queimados perpetradas por pequenos grupos de índios, sem-tetos, sindicalistas, black-blocs; quer por intermédio de "rolezinhos" ou de queima de ônibus nas comunidades mais carentes; quer pelo aumento preocupante da criminalidade; ou quer pelos “panelaços”. Todos esses movimentos e indícios de insatisfação dos diversos grupos sociais no país querem participar mais da política do país; contudo não se identificam com nenhum partido do atual arcabouço político-partidário e, ao mesmo tempo, precisam canalizar suas demandas político-sociais de alguma maneira. Não é à toa que algumas das lideranças de algum desses grupos, minimamente, organizados estão sendo recrutados por partidos e outras entidades ligadas à política. Em suma, tudo isso são sintomas decorrentes dessa colossal mudança social.
E é daí que surge meu argumento sobre a atual crise de identidade sociocultural brasileira, pois quem era miseravelmente pobre, agora pode consumir, mesmo com a inflação e com a crise, tornando-se, dessa forma, em um agente econômico que naturalmente demanda produtos e serviços, e o qual, por mais marginalizado que seja, passa a exigir mais do governo e da sociedade. Já quem era moderadamente pobre, agora pode ter acesso à educação, mesmo que esse acesso ainda seja muito limitado, precário e desqualificado, tornando-se em um agente político, que passa, mesmo que minimamente, a entender um pouco mais da sua função social e força política. É mais do que óbvio que, por ser um processo de socialização lento, no curto prazo, boa parte dessas novas classes médias, em especial nas áreas mais empobrecidas, ainda creditam sua ascensão e, logo, seu apoio político ao governo atual e ao PT que, sem dúvida nenhuma, soube politicamente cativar e explorar muito bem esse novo mercado eleitoral.
Entretanto, no longo prazo, e, consequentemente, com uma maior conscientização política por parte dessas novas classes médias, tanto suas demandas sociais quanto suas alianças políticas devem mudar significativamente. Já que quem era ou ainda é de classe média e, por isso, já tinha uma percepção político-social mais elaborada, passa também por uma crise de identidade, talvez a pior de todas as outras classes sociais, pois se vê espremida entre a difícil tarefa de ascender ainda mais na pirâmide social, que só se afunila, à medida que se chega mais perto do cume, e vendo seus esforços frustrados, também passa a demandar mais, a se sentir tanto enganada ou traída pelas elites quanto vitimada pela ascensão das novas classes médias que extenuam ao extremo toda a rede de serviços e infraestrutura que já eram inadequados e passam a comprimir seu espaço em um mercado de trabalho cada vez mais competitivo. Sendo assim, alguns setores das antigas classes médias, por serem mais politizados, por vezes, se revoltam de forma mais agressiva e mais organizada contra os dois extremos da pirâmide social: 1) contra as elites e o poder público, por terem esse sentimento de que foram enganados, traídos e frustrados por esses; e 2) contra as novas classes médias, as quais desqualificam como alienados, manipulados, sustentáculos do governo e outros adjetivos negativos, muitos de cunho social-discriminatório ou até mesmo abertamente racistas, homofóbicos, ultraconservadores ou reacionários.
O Brasil indubitavelmente é ainda um dos países com as maiores desigualdades sociais do planeta,
porém, se iniciou, a partir da estabilização econômica e monetária do Plano Real do PSDB e das políticas de transferência de renda dos governos do PT, e condições econômicas externas favoráveis, como a ascensão dos BRICS, um processo de mobilidade social que possibilitou o acesso de 3,5 milhões de brasileiros ao mercado consumidor. Esse novo e engrandecido mercado consumidor, consequentemente, gerou mais demanda tanto por produtos quanto por serviços, sejam esses privados ou públicos, que não foi correspondida pelo lado da oferta, pois sabemos que tanto os governos do PSDB quanto do PT, que comandaram o país nesses últimos 20 anos, apresentam taxas de investimentos e média de crescimento econômico muito aquém das expectativas, quando comparadas com países com realidades parecidas com as do Brasil, como a América Latina e os BRICS, e, sobretudo, inadequadas para reequilibrar o aumento do consumo com um aumento proporcional de produtividade.
Corrupção, déficits públicos exorbitantes, baixo crescimento econômico, desvalorização cambial, alta da inflação, aumento de juros, marcos regulatórios instáveis, falta de credibilidade das leis e da justiça, infraestrutura sucateada, serviços sociais precários, carga tributária degeneradora, entre outras mazelas, sufocam cada vez mais os níveis de produtividade e de capacidade do país de preencher esse vácuo entre demanda crescente e oferta estagnada. Desse modo, ter uma economia em pleno emprego, maiores transferências de renda e crédito facilitado, em um cenário de baixa produtividade, ao invés de ajudar na diminuição da pobreza e das desigualdades sociais, só gerará crises de abastecimentos de produtos e de serviços públicos e privados, mais inflação e mais conflitos políticos e sociais. Enfim, temos uma panela de pressão social, a qual não tem mais para onde dissipar sua pressão política, ou o poder público realiza as reformas estruturais necessárias (reformas: tributária, jurídico-legal, política, replanejamento urbano, agrária, previdenciária, energética, educacional, saúde pública entre outras), para canalizar essas crescentes demandas e expectativas sociais, ou a panela vai certamente explodir e os indícios dessa explosão já estão sendo bem visíveis.
David E. Barreto, cientista político e historiador, formado na City University of New York – Queens College.
dbrazilianny@aol.com
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