O programa nuclear norte-coreano e a complacência da China nesse processo. Seria a China cúmplice ou
- Guilherme Carvalho
- 19 de set. de 2017
- 5 min de leitura

Uma das coisas que mais me chamou, e ainda me chama, atenção em toda esta crise internacional acerca do desenvolvimento do programa nuclear e de mísseis da Coreia do Norte, o atual embate retórico e de manobras militares entre Kim Jong-Un e Donald Trump e as recentes sanções impostas com unanimidade do Conselho de Segurança da ONU, claro, com voto favorável da China, é o fato de como a própria China e, até mesmo a Rússia (antiga União Soviética), países já pertencentes do clube dos que possuem declaradamente armamentos nucleares, permitiram, ao longo das décadas, que um pequeno país fronteiriço, como a Coreia do Norte, desenvolvesse um programa militar nuclear.
E a razão para esse questionamento é bem claro e simples, e ninguém precisa ler “A Arte da Guerra” de Sun Tzu, jogar o jogo de tabuleiro “War” ou ser um especialista em relações internacionais para saber que não é de interesse fundamental de nenhum país, sob o ponto de vista da sua segurança estratégica, geopolítica e militar, ter países ao seu redor, ou na sua região, que efetivamente possuam esse tipo de tecnologia e de armamento nuclear, pois, como sabemos e como as bombas de Hiroshima e de Nagasaki evidenciaram, um artefato nuclear e/ou atômico tem um poder de destruição totalmente desproporcional a qualquer tipo de operação ou de objetivo político-militar. Assim, até mesmo um pequeno país, como a Coreia do Norte, poderia se pressionado ou se acuado de alguma maneira fazer uso desse armamento de destruição em massa para atacar ou para se defender em um determinado cenário conflituoso.
No entanto, o fato que destoa ainda mais e traz, ao meu ver, alguma desconfiança e uma ambiguidade suspeita na postura chinesa, é o caso de ser, em especial, a Coreia do Norte, um país que é produto de uma guerra a qual ainda está oficialmente em curso, pois houve apenas um armistício entre as partes do conflito da chamada Guerra da Coreia (1950-1953), a qual inclusive dividiu o país, e que está em constante “queda de braço” com sua rival direta, a Coreia do Sul, e o principal aliado desta, os Estados Unidos. Ademais, se pensarmos que apesar de a China ter recentemente demonstrado uma assertividade mais contundente na região do leste asiático o que provocou, em alguma medida, uma reação negativa norte-americana com a implementação do chamado “Pivô para a Ásia”, ainda na administração de Barack Obama, a China e os Estados Unidos têm relações econômicas, comerciais e financeiras umbilicais e altamente relevantes para os dois lados o que nos fazem pensar que uma instabilidade maior nesse momento não seria, na teoria, desejável para nenhum deles. Então resumindo, temos um país em um contexto de guerra e de constante embate político, com um regime de viés extremamente autoritário e militar, desenvolvendo um programa nuclear e de mísseis por pelo menos 60 anos.
O que nos reverte à pergunta inicial: Como esse pequeno país, com recursos limitados devido aos diversos e longos embargos econômicos e comerciais, adquiriu essa capacidade militar-nuclear debaixo dos “narizes” de algumas das maiores potências da região e do mundo, como a Rússia, o Japão e, especialmente, a China?
Digo, “especialmente a China”, país historicamente aliado dos norte-coreanos, mas que tem sua capital, Pequim, a pouco mais 800 km de distância da Coreia do Norte e, por isso, teria, em tese, mais com que se preocupar com o desenvolvimento do programa nuclear norte-coreano. Se considerarmos que já o quarto míssil de maior alcance da Coreia do Norte, o HWASONG-7, provido com uma ogiva nuclear, chegaria, rápido e facilmente, aos arredores de Pequim, eu diria que se eu fosse chinês, eu estaria muito mais preocupado do que um americano com o programa nuclear de Pyongyang . Lembrando que no portfólio balístico de mísseis norte-coreanos, o de maior alcance efetivamente testado é um ICBM, míssel de alcance intercontinental, chamado de TAEPODONG-2, que possui um alcance aproximado de mais de 10,000 km.
Diante dessa última afirmação, alguns leitores podem imediatamente indagar: “Mas não é precisamente por autopreservação que o contestado e isolado governo norte-coreano não se armaria nuclearmente?” Eu, certamente, responderia que “sim”, que faz todo o sentido para a Coreia do Norte, um país cercado de grandes potências nucleares e econômicas, se armar o máximo possível visando sua sobrevivência como regime. Contudo, essa mesma indagação deveria ser algo muito preocupante para os países da região do leste da Ásia, em particular, e a comunidade internacional em geral. Por isso, uma análise das relações entre a China e a Coreia do Norte faz-se necessária para elucidarmos de forma mais clara como todo esse processo de obtenção de tecnologia nuclear pela Coreia do Norte aconteceu.
A China, além de ser um aliado histórico da Coreia do Norte, pois lutou ao lado dos norte-coreanos para garantir a resistência do país contra o avanço das forças americanas e sul-coreanas na Guerra da Coreia, causando o recuo desses últimos ao fim do conflito, o armistício e a subsequente divisão do país em duas Coreias, ao longo de todas essas décadas pós-conflito é, de longe, a maior parceira comercial da Coreia do Norte. Em 2015, A Coreia do Norte exportou cerca de 76,5% de seus produtos, na sua maioria commodities como minérios e produtos agrícolas ou alguns produtos manufaturados de baixo valor agregado para a China. Em contrapartida, também vem da China, aproximadamente 76,3%, a maior parte das importações norte-coreanas. Em 2016, o valor em dólar comercializado entre China-Coreia do Norte chegou a U$ 2,6 bilhões, ou 90% do total dos produtos exportados pela Coreia do Norte. O segundo lugar ficou com a Índia com apenas U$ 87,4 milhões. Em outras palavras, fica claro que a China, em termos econômicos e comerciais, possui um poder de barganha bastante considerável em relação à Coreia do Norte e esse poder de barganha, pelo menos no âmbito econômico-comercial, tem aumentado e não diminuído recentemente.
A China é também o maior provedor de comida e de energia à Coreia do Norte, assim como frequentemente foi contrária a toda e qualquer resolução no Conselho de Segurança da ONU contra a Coreia do Norte, inclusive por acusações pesadas de crimes de tortura e outras violações graves de direitos humanos. Contudo, essa “vista grossa” chinesa para com os norte-coreanos durou até outubro de 2006, quando a Coreia do Norte testou, pela primeira vez em grande escala, uma bomba nuclear. Isso repercutiu como uma mudança de postura histórica da China por ter apoiado a Resolução 1718 do CS/ONU, a qual impunha sanções a Coreia do Norte. A partir daí, outras resoluções contra o governo norte-coreano foram também adotadas com o suporte chinês. Muitos especialistas analisaram essa conduta como uma demonstração de grande insatisfação dos chineses com o governo de Pyongyang. No entanto, o fluxo comercial entre os dois países não foi impactado de modo significativo nesse período, e até algumas das sanções previstas nas resoluções tiveram sua linguagem alterada para amenizar os efeitos punitivos dessa medida. Outrossim, o governo de Kim Jong-Un, nesse período, conseguiu não só se consolidar no poder, após a morte de seu pai Kim Jong-Il, como também obter avanços contra inimigos políticos, inclusive o assassinato do seu irmão por envenenamento, e no programa nuclear-militar e de mísseis balísticos.
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